“A Paixão é uma virtude mas, quando utilizada em excesso, pode transformar-se num vício”.
Esta frase constituía uma pergunta de desenvolvimento de um teste de Filosofia que fiz no meu (antigo) sexto ano do Liceu Pedro Nunes.
Ao longo da nossa vida temos, e é bom que tenhamos, algumas paixões e às quais nos devemos dedicar com bastante entusiasmo. Uma das minhas maiores paixões é precisamente o Desporto. Não consigo estar muito tempo sem me entregar de corpo e alma a uma qualquer actividade desportiva. Neste momento já é um vício, talvez mesmo o meu maior vício. E é este meu vício que me levou a participar pelo segundo ano consecutivo na terrível Ultra Maratona Melides Tróia. Se correr uma Maratona já é um desafio, então o que diremos fazer quarenta e três quilómetros em areia. Como dizia um amigo meu na viagem de barco para Tróia “há coisas que só faz sentido fazermos uma vez, e a Maratona Melides Tróia é uma delas”. Considero que ele até estará certo. Mas a minha paixão pelo desporto levou-me a repetir a dose deste inferno e de sofrimento que é correr em areia durante mais de seis horas. Nestas duas vezes que cumpri este desafio disse para mim próprio que não o voltaria a repetir. Mas será que terei coragem de no próximo ano resistir e não me inscrever de novo para esta bela odisseia? Sinceramente não sei ... mas penso que não. Na parte final da corrida, depois de ultrapassada a Praia da Comporta, várias vezes me questionei o que estava a fazer ali e o que estava a tentar provar. Certamente que não estou no meu perfeito juízo. Mas mesmo com todas estas interrogações lá continuei até ao fim.
Mas nesta loucura também não estou sozinho. Mesmo a minha família e os meus amigos, que teoricamente reprovavam a minha intenção de participar nesta aventura, não deixaram também de se sentir atraídos pelo desafio. As mulheres da minha vida (Ana Luísa e Ana Catarina) fizeram questão de uma vez mais testemunhar “in loco” a minha chegada à Praia do Bico das Lulas em Tróia. E os restantes membros das LEBRES E TARTARUGAS, tanto em Portugal como na distante Ilha de Creta, não deixaram de me acompanhar e de me fazerem sentir que estavam ao meu lado e a torcer por mim, com ou sem Deuses gregos.
Eram cerca das cinco da manhã e já estacionava o carro em Setúbal a tempo de tomar o barco para Tróia. Apesar da hora madrugadora o movimento junto à Doca do Comércio em Setúbal era grande. A chuva fez questão de aparecer como que a querer dizer-nos que não iríamos ter um calor infernal como o do ano passado a dificultar-nos o nosso desempenho. O “Catamaran” largava o Porto de Setúbal praticamente cheio. A animação era grande tal era o entusiasmo de todos os passageiros. Aliás todos os que ali estavam partilhavam o mesmo espírito misto de aventura e de satisfação.
Antes das oito da manhã chegámos a Melides. Ordeiramente todos formámos uma fila de espera e aguardámos pacientemente o momento de levantamento dos nossos dorsais. Tínhamos mais de uma hora para cuidar de todos os preparativos para a Grande Corrida.
O ponto de partida foi logo identificado: 0 Km.
Notava-se uma aglomeração de atletas junto ao simpático Bar da Praia de Melides. Era tempo de verificar se todo o equipamento estava em condições e de também fazer as habituais incursões ao WC. Mesmo nesta idade, e com a experiência acumulada, o nervosismo ainda toma conta dos atletas e tolda o nosso espírito assemelhando-nos a uns meros principiantes nestas andanças.
Cada um com os seus objectivos aguarda pacientemente, ou nem tanto, o “tiro da partida”.
Finalmente às nove horas da manhã é dado o sinal da “largada”. Sabíamos que este ano não iríamos de certeza ter as mesmas condições de 2012. Por um lado o calor não iría apertar tanto e por outro previa-se um vento de Sul que nos daria uma “mãozinha” ao longo de praticamente toda a prova. Mas como nem tudo é bom também se previa um piso muito mole ao longo de toda a corrida. Só por este pormenor logo esperávamos dificuldades acrescidas.
Cada um ao seu ritmo, e sem ligar muito aos que voavam de Melides em busca de um lugar de destaque, preparávamo-nos para uma longa caminhada de muitas horas e em condições bastante difíceis. Sim, porque uma coisa é correr uma Maratona em Estrada e a outra é fazer quarenta e três quilómetros em areia, piso mole e que quase parece querer engolir os nossos pés.
Uns optam pela beira-mar, outros pelo meio do areal, e alguns preferiram mesmo correr junto à falésia onde o piso aparentava ser mais consistente. Uma certeza todos tínhamos de antemão: não iríamos ter uma maré baixa com a amplitude do ano passado em que durante largos quilómetros mais parecia que estávamos a participar numa Maratona de Estrada, com um piso duro (consistente) e com o arrefecimento da água do mar que banhava os nossos pés. E também sabíamos que apenas nos seria proporcionado um abastecimento de água (apenas um escasso litro) na Praia da Comporta, cumpridos 28,5 quilómetros. Certamente que é duro mas todos conhecíamos as regras desde o momento em que nos inscrevemos na Ultra Maratona Melides Tróia.
O facto das condições meteorológicas não serem muito convidativas contribuiu para que não encontrássemos a mesma quantidade de veraneantes a apoiarem-nos. Mas os poucos com que nos cruzámos não nos regatearam palmas e palavras de apoio e de incentivo aos “corajosos” que trocaram uma pacata ida à praia com a família por esta aventura.
À medida que os quilómetros vão avançando começa a luta contra o tempo, contra o cansaço e, principalmente, contra a possibilidade de falta de água. Esta é, sem dúvida, a gestão mais difícil que se nos coloca.
Os últimos dez quilómetros foram aterradores. A cabeça empurra para a frente mas as pernas parecem querer ficar ali mesmo. É nesta fase, principalmente depois da Praia de Soltróia, que devemos ter consciência dos nossos limites. Em 2012 consegui cumprir toda a corrida sempre a correr. Mas, fruto do maior desgaste da primeira metade da corrida, tomei a decisão que me pareceu mais correcta de molde a chegar “são e salvo” a Tróia: despi-me do meu orgulho e parei por breves segundos após o que cumpri cerca dois quilómetros a andar. Esta opção revelou-se a mais acertada pois consegui recuperar física e animicamente o que me permitiu terminar a Ultra Maratona em bom ritmo. O que interessa é não desistir e concluir a prova dentro do tempo limite. No final, em conversa com outros atletas, concluí que muitos dos que terminaram antes de mim fizeram boa parte da corrida a andar, em bom ritmo mas que lhes permitiu não se desgastarem tanto quanto eu.
Perto do quilómetro quarenta e dois vejo a minha mulher e o Pedro (o namorado da minha filha para quem não saiba) que partiram de Tróia à minha procura. Foi o tónico de que precisava e que me ajudou a terminar a ultra maratona com um sorriso nos lábios e em condições bem melhores do que as do ano passado.
No entanto o relógio não perdoa e mostra-me que gastei mais uma hora do que em 2012. Mas isso também aconteceu com a esmagadora maioria dos atletas, incluindo o veloz e “voador” Eusébio Rosa. Já recuperado do esforço dizia à minha filha que muito provavelmente não voltaria a repetir esta participação. A ver vamos …
Com um número recorde de participantes, apesar de algumas desistências e desclassificações pelo meio, ainda terminaram perto de quatrocentos atletas. E invariavelmente venceu o mesmo das últimas edições.
Agora segue-se o tempo de gozar umas merecidas férias de corridas após longos meses de intensas participações. Mas atenção que o descanso não será total pois em Outubro e Novembro temos as Maratonas de Lisboa e do Porto. E abrir a época lá vem a Corrida dos Moinhos de Penacova, disputada em Montanha.
Atletas que concluiram a prova: 397
Vencedor: EUSÉBIO ROSA (Sport União Caparica): 3:04:49
CARLOS GONÇALVES (Dorsal Nº317)
Classificação Geral: 357º - Classificação no Escalão(M5054): 19º
Tempo Oficial: 7:10:30/Tempo Cronometrado (Tempo do Chip): 7:10:30
Tempo médio/Km: 10m:01s <=> Velocidade média: 5,99Km/h (*)
(*) - O Tempo médio/Km e a Velocidade média foram calculados em função dos tempos cronometrados (tempo do chip)
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